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2 de mar. de 2021

Hot Space um divisor de águas - refletindo

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QUE O HOT SPACE FOI DIVISOR DE ÁGUAS e o mais polêmico momento da carreira do Queen não resta uma sombra de dúvida. 

(texto - Douglas Gregorio)
 
É um pouco difícil para a geração de fãs que acompanha o Queen desde os anos 70, explicar como vivenciamos aquele momento aos fãs mais jovens.
 
Naqueles tempos, numa roda de amigos num happy hour, por ex, quando o assunto era música, o nome Queen quando citado era recebido com um silêncio respeitoso... Olhares mudavam... literalmente, a rainha em pessoa havia chegado e todos, gostando ou não, lhe prestavam a reverência. Ouvir Queen, naqueles tempos, conferia à pessoa um significativo status de bom gosto, inteligência, refino e vanguardismo. Queen era diferente de tudo o que se podia imaginar, dentro e fora do Rock.
 
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Experimentalismo, ecletismo, criatividade e genialidade estavam na essência das criações do Queen. Os anos 70 foram tempos de gigantescos vultos no Rock, em especial o britânico, e o Queen era a sua majestade em seu apogeu. Os álbuns do Queen sempre apresentaram canções completamente diversas umas das outras. Especialmente no Jazz, de 1978, percebeu-se uma ousadia e uma guinada que condizia com a proximidade do fim daquela década.
 
Resultado de imagem para aparelhos eletronicos dos anos 80 Os anos 80 trouxeram muitas novidades em termos tecnológicos, e em muito breve muito das tecnologias áudio-visuais usadas intensamente entre os anos 60 e 70 iriam se tornar obsoletas. Ainda não havia CDs e DVDs, o VHS (videocassete) era a grande novidade, ainda inacessível mesmo aos assalariados mais bem empregados que estavam adquirindo status ao comprar sua primeira TV a cores.
 
Só existia TV aberta restrita às mais tradicionais emissoras (a maioria das quais ainda sobrevive).  O FM não era novidade, mas ainda era recente e carecia de identidade, uma vez que era pensado para executar ritmos musicais voltados para o som ambiente - o então "balanço" - distinguindo-se menos pela qualidade da música e mais por oferecer som estéreo (dividido em canais), febre daqueles que procuravam adquirir seu primeiro aparelho de som "três em um" (toca-discos (vinil), rádio e K7 (fita magnética).
 
 

 A segmentação do mercado ainda não era uma realidade, e as novas gerações, diferentes das anteriores que eram rebeldes e contestadoras, agora queriam dançar, dançar e dançar, em algo prenunciado pela moda discotheque (disco) que projetou o jovem John Travolta em seus Embalos de Sábado à Noite, e no Brasil estourava a partir do sucesso de uma das mais históricas novelas da Globo, Dancin' Days, em que Sônia Braga, vivenciando a personagem Julia, deixou o Brasil boquiaberto e sem fôlego com sua sensual e espetacular performance coreográfica numa das mais antológicas cenas da história da telenovela brasileira.
 
Em seguida, a ascensão da super dançante black music e do funk (que nada tem a ver com o funk dos dias de hoje) encontrou em Michael Jackson e seu Thriller um dos maiores fenômenos pop de todos os tempos... moral da história: sobrava pouco espaço para o rock pesado (precursor do Heavy Metal), e a falta de segmentação nas rádios e TVs impunha ao público o mais comercialesco. Pioneiro na exibição dos videoclips que começavam a pulular, o programa TV2 Pop Show (que nos anos 80 passou a se chamar Som Pop) talvez tenha sido o primeiro a exibir o vídeo de Bohemian Rhapsody no Brasil... 
pelo menos foi lá que eu o vi pela 1a vez... em preto e branco.
 

Mas o que o Hot Space tem a ver com tudo isso? Tem a ver que a sua controvérsia surgiu justamente porque a crise de relacionamento que a banda passava após o primeiro decênio de existência, a consagração consolidada e o cenário da ocasião ofereciam poucas oportunidades a uma banda na situação do Queen: o rock em todas as suas nuances estava em baixa, os componentes da banda já estavam saturados uns dos outros, empresário e gravadora manipulando e exercendo pressão para a banda mergulhar no comercialismo efêmero, e a crítica de certa forma forçando uma crise na banda ao afirmar que a situação seria solucionada com a troca de alguma cabeça por ali, o que traria novidades e driblaria vícios, a exemplo de praticamente todas as bandas da época.
 
Já não tinham mais o desafio de se consolidar como grande banda, e aquelas sacadas que os faziam tão criativos e respeitados já não fluiam com a facilidade anterior; então, diziam: se o black Another One Bites the Dust foi som negro e dançante, criado e levado ao sucesso por brancos britânicos, por que não renovar e embarcar na onda dançante, que é a onda do momento? Só que a concessão foi longe demais, um desastre, e o Queen aprendeu na porrada que o público deles não era dance, mas Rock'n Roll... e público Rock'n Roll é conservador.
 
O fã de Iron Maiden sempre terá a esperança de encontrar em cada novo álbum da banda um novo The Number of the Beast, assim como os fãs do Queen tinham a esperança de encontrar um novo We are the Champions. O Queen, como já dito, sempre, ao longo de sua trajetória até então, investia em experiências extra-Rock em seus álbuns, no entanto, sempre manteve com maestria sua identidade essencialmente Rock... No Hot Space, ele renunciou a esta identidade. Este foi o grande problema que gerou a crise com os fãs.
 
Under Pressure não conta - esse foi um trabalho à parte, produzido fora do projeto do álbum e nele incluído por conveniência. O público roqueiro, que era o público do Queen, já havia torcido o nariz há pouco tempo com a experiência de Flash Gordon - afinal, é álbum, ou não é álbum? Sou da opinião que não é, mas há os que acham que é.
 
Onde foi parar todo aquele som trabalhado? Perguntávamos, porque aquilo era um aglomerado de clichês e templates mais próprios a aquelas produções B nas quais uma ou outra emplacava um sucesso para gerar faturamento para a gravadora, se fazendo presente nas rádios e programas de TV os mais bregas possíveis, com os famosos "cantores de uma música só".
 
Recordo de um crítico (Revista Rock Star (série Violão & Guitarra) uma das raras publicações impressas da época que atendia ao público Rock) comparando o Queen a Gazebo, banda vocal que entoava a brego-comercialesca canção "I Like Chopin", típico sucesso para pagar as contas de água e luz da gravadora... claro que nunca mais se ouviu falar em Gazebo.
 
Recordo que a TV Record (antes da era Edir Macedo) exibia um programa que rendia chacota entre os amigos de tão brega e forçado, chamado "Nova Onda"; uma das febres da época eram os patins, e recordo que, neste programa, que tinha por objetivo atingir o público jovem, Las Palabras de Amor foi executada não com um videoclip, mas com cenas de um garoto andando de patins pelas praças de São Paulo. Risível.
 
Isso sem falar no apelo à sensualidade vulgar - Body Language chegava a render piadas também, e era difícil acreditar que o Queen estava por trás daquilo e... Cool Cat (que depois se soube, tinha sido feita para a voz de David Bowie)... meu... a gente precisava se beliscar para ver se aquilo não era um pesadelo depois de coisas como We are the Champions, Bicycle Race, Save Me ou Somebody to Love.
 
Para entornar de vez o caldo, queimar o filme, ou o pior de tudo: rasgar a camisinha, começaram os rumores de separação da banda, que nos amedrontava cada vez mais, dado o prolongado intervalo entre o Hot Space e o The Works.
 
Os fãs que aderiram à Sua Majestade quando ela já havia se tornado uma lenda, um fenômeno mundial, talvez não tenham sequer como entender por que a turma do Geriatric Queen, da qual eu faço parte, costuma manifestar algo que os médicos chamam de GECA quando ouvimos falar de Hot Space (gastroenterite-colite aguda, mais conhecida como caganeira).
 
Os anos se passaram, superamos o trauma e a maturidade nos ensinou a encontrar alguns valores no Hot Space (ou Empty Space como chegou a ser chamado na época), mas ainda ficamos um pouco assustados com a naturalidade como os fãs mais jovens, que surgiram após a passagem de Freddie, declaram que o Hot Space é seu álbum predileto.
 
Enfim, resta a pergunta: o Hot Space... por estas e por outras... será que pode ser considerado o mais importante álbum do Queen, talvez até superando o "Opera", não tanto pela genialidade musical, e mais por seu significado na trajetória da banda?!